quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Sonho de D. Manuel (C.IV, 68-74)

68
«Estando já deitado no áureo leito,
Onde imaginações mais certas são,
Revolvendo contino no conceito
De seu oficio e sangue a obrigação,
Os olhos lhe ocupou o sono aceito,
Sem lhe desocupar o coração;
Porque, tanto que lasso se adormece,
Morfeu em várias formas lhe aparece.

71
«Das águas se lhe antolha que saíam,
Pera ele os largos passos inclinando,
Dous homens, que mui velhos pareciam
De aspeito, inda que agreste, venerando;
Das pontas dos cabelos lhe saíam,
Gotas, que o corpo todo vão banhando;
A cor da pele, baça e denegrida,
A barba hirsuta, intonsa, mas comprida.

73
«Este, que era o mais grave na pessoa,
Destarte pera o Rei de longe brada:
"Ó tu, a cujos reinos e coroa
Grande parte do mundo está guardada,
Nós outros, cuja fama tanto voa,
Cuja cerviz bem nunca foi domada,
Te avisamos que é tempo que já mandes
A receber de nós tributos grandes.

74
"Eu sou o ilustre Ganges, que na terra
Celeste tenho o berço verdadeiro;
Estoutro é o Indo, Rei, que, nesta serra
Que vês, seu nacimento tem primeiro.
Custar-te-emos, contudo, dura guerra;
Mas, insistindo tu, por derradeiro,
Com não vistas vitórias, sem receio
A quantas gentes vês porás o freio." 

Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto IV 

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