quarta-feira, 21 de maio de 2014

O Menino da Sua Mãe

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado-
Duas, de lado a lado-,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino de sua mãe.»
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe
Fernando Pessoa
ANÁLISE DO POEMA
O poema foi inspirado numa litografia que observou numa pensão, onde, uma vez, jantou com um amigo.
É considerado uma obra-prima de visualidade poética e de impressionante intensidade dramática. 
O poeta presentificou o objeto, criando no leitor a ilusão de que descreve a litografia como se a tivesse diante dos olhos. 
O eu poético detém-se em pormenores impressionistas: a farda raiada de sangue, do jovem soldado morto, o seu olhar sem vida, a cigarreira, o lenço branco. O leitor tem a impressão de estar perante o «original» que todavia é a representação de uma cena real ou imaginada. 
O poeta descreve a cena, como se o seu olhar fosse uma câmara de filmar. São vários os enquadramentos: primeiro o lugar da «ação» – local de abandono e desolação, longínquo da mãe e da pátria do jovem soldado morto que, a pouco e pouco, arrefece e que, em breve, entrará em decomposição; depois numa aproximação e em grande plano, veem-se os buracos que as balas fizeram no corpo do jovem combatente, provocando-lhe a morte. Seguidamente, num processo de linguagem fílmica, a «câmara» foca o sangue que mancha a farda e os braços estendidos, vazios de vida, presentificando no leitor-espetador a ideia da morte. A cor branca da pele, o cabelo louro, o olhar parado a fitar «os céus perdidos» remetem para as relações iniciais de afastamento da terra natal, dos entes queridos, do abandono a que foi votado em terras distantes, onde foi defender o Império e ainda a sua perdição total e irremediável – a morte. A «câmara» desce e focaliza os objetos pessoais – a «cigarreira breve», o «lenço branco»; objetos de forte carga afetiva, símbolos de um corte dramático num ciclo de vida (a adolescência deu lugar à vida adulta), tão abruptamente interrompido. 
Ora, a magistral arte criadora do poeta reside na história (tempo passado) do «menino de sua mãe», no que se passava lá longe no seu lar, pois que a litografia contava tão-somente a desgraça que aniquilara o jovem herói que morrera num campo de batalha. 
O poema revela um equilíbrio perfeito entre o descritivo e o narrativo, observando-se o presente (que se justifica pela descrição de uma litografia cuja centralidade é ocupada por um herói já morto, mergulhado na intemporalidade) e o pretérito, tempo exigido pela narração. 
Uma leitura simbólica poderia reenviar o leitor para a experiência dramática do poeta ao passar da sua infância adolescência para a vida adulta. Estaria Fernando Pessoa (que perdera a mãe há tão pouco tempo) a projetar-se no jovem soldado morto, chorando sobre si mesmo, sobre o «menino de sua Mãe» que irremediavelmente «jazia» morto? 

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